Era um dia de semana qualquer. Ian havia tirado a tarde de folga no trabalho para que pudéssemos vir a Swords (para onde nos mudaríamos em breve) visitar a nova creche do Erik e conversar com a gerente.
Estávamos todos no carro, eu ainda grávida, quando Ian parou na faixa de pedestres para deixar um grupo de estudantes atravessar. Eram 10, 12 crianças e pré-adolescentes. Atravessaram a rua conversavando entre si, dando risadas e pareciam muito felizes voltando da escola. Alguns agradeciam com a mão, outros faziam tchau. Uma menina me jogou um beijo.
Todos eles tinham síndrome de down.
Ian colocou a mão na minha barriga, fez um carinho, mas não disse nada. Eu, que o conheço quase tanto quanto a mim mesma, sei que sem dizer nada ele me disse naquele momento que tudo ia ficar bem.
Naquela mesma semana, coincidentemente, eu havia saído da minha consulta de rotina com a parteira com um diagnóstico de polidrâmnio.
Polidrâmnio, para quem nunca ouviu falar (eu nunca tinha ouvido), é o excesso de líquido amniótico no útero durante a gestação. Pode não ter causa nenhuma, pode ser causado por infecção ou diabete materna (ambas logo descartadas no meu caso), alguma deformação congênita no feto (o que também foi praticamente descartado mais tarde com uma ultrasonografia detalhada) ou pode ainda ser um sinal de que o bebê pode ter síndrome de down.
Eu e Ian optamos por não fazer nenhum exame que pudesse detectar se nosso bebê tinha mesmo a síndrome. Foi uma decisão não pensada, nem combinada, foi só natural. Aquele bebê ia ser para a gente uma surpresa, já que nem mesmo sabíamos o sexo, então que fosse uma surpresa completa. Era o nosso bebê, fosse menino, menina, com ou sem qualquer síndrome, deformação ou necessidade especial. Era o bebê que a gente já amava incondicionalmente e nada mudaria isso.
O que nem de longe quer dizer que eu não fiquei muito mal com essa possibilidade. Chorei muito, me culpei pelo que ainda nem era fato, passei noites em claro pensando se seria capaz de ser uma boa mãe para uma criança que ia precisar de mais cuidados, que exigisse mais de mim. Tive medo. Medo das dificuldades, medo do preconceito. Muito medo.
A vida seguiu, a gravidez também, por sorte sem nenhuma complicação por conta do polidrâmnio.
Elena nasceu, como todo mundo já sabe, sem nenhum problema. Naqueles minutos logo depois do parto, quando peguei ela no colo, a possibilidade dela ter a síndrome nem me passou pela cabeça. Aquela mistura de adrenalina com ocitocina de um parto natural só me deixava sentir o cheiro doce dela. Nem soube na hora se era um menino ou menina aquele bebê no meu colo (não olhei e nem registrei a informação quando me falaram). Muito tempo depois é que fui perguntar para o Ian se era uma menina.
No entanto, confesso que mais tarde, me senti feliz e grata por ela ter nascido do jeito que nasceu. Lembrei ainda, que naquele dia na faixa de pedestres tinha encarado aquilo como um sinal. Um não, dois. O primeiro, que eu ia dar à luz a um bebê com síndrome de down. O segundo, de que sim eu seria uma boa mãe para qualquer filho que a vida colocasse no meus braços.
Desde aquele dia tenho reparado que Swords está cheia de crianças e adolescentes com a síndrome, não sei por quê. Próximo à escola do Erik, por exemplo, funciona uma escola que eu não sei bem se é para crianças com necessidades especiais ou simplesmente inclusiva. O fato é que muitos desses adolescentes e crianças estudam por lá e estão por toda a parte: no ônibus que pegamos de manhã, pelas ruas do centro, trabalhando nas lojas do shopping center.
Uma dessas adolescentes trabalha no Starbucks que frequentamos. Sempre que vou lá com a Elena (e são muitas vezes) ela para o trabalho para vir conversar com a gente. Passa longos minutos me contando da vontade que ela tem de viajar o mundo e conhecer outras culturas e faz muitas perguntas sobre Elena, que aliás sempre abre um sorriso maior do que o rosto para ela.
Ontem, do nada, enquanto tomava meu café por lá com Elena no colo essa menina se aproximou novamente e perguntou se podia me falar uma coisa. Foi então que ela me disse que eu tinha muita sorte porque Elena era perfeita. Respondi que sim, que Elena era perfeita como ela. Ela sorriu e disse que era mais do que isso, que Elena era especial e que falava com a gente pelos olhos.
Quando perguntei o que ela quis dizer com aquilo ela voltou a dizer que Elena conversava com ela através do olhar e me perguntou se eu nunca tinha reparado.
Não sei explicar, mas aquilo me arrepiou. Eu poderia, e deveria, ter dito para ela que não, que talvez só alguém muito especial, como ela, reparasse mas na falta de algo bonito para dizer só consegui ficar calada.
Aquele dia, assim como naquele outro, voltei para casa chorando.
N.
32 Comments
Mariana Nunes
June 17, 2015 at 10:55 pmQue texto lindo, Nivea! Estou aqui engasgada e suando pelos olhos.
E sim, sua Elena conversa com os olhos. Ela sorri com os olhos e essa é das coisas que eu acho que uma pessoa pode ter de mais belo. Que ela continue a sorrir assim por toda a vida.
E muito obrigada por dividir com a gente sua sensibilidade e seus tesouros.
Beijos
Zulmira
June 18, 2015 at 6:19 pmMariana falou tudo o que eu queria dizer após ler esse relato. (Eu também estou suando pelos olhos.) :’)
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:44 pmObrigada, Zulmira x
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:49 pmAh, que lindo Mariana xxxx
Angela
June 17, 2015 at 11:24 pmNivea,
Eu sou mãe de um menino especial! Meu filho nasceu com uma síndrome rara chamada Neurofibromatose e essa semana descobrimos que ele tb tem Autismo, e eu, tb não quiz fazer nenhum exame durante a gravidez para saber se o bebê tinha alguma síndrome, para mim não havia necessidade de saber antes, eu nada poderia fazer para mudar isso! Só tivemos a confirmação da NF qdo ele tinha seis meses (hoje ele está com 4 anos), desde então tem sido difícil e maravilhoso ao mesmo tempo! Mas o que realmente importa é o nosso amor, e o que vai ser no futuro não importa, o importante é ter meu menino aqui, baguncando a casa, me deixando louca e muito orgulhosa em cada pequena conquista!
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:48 pmQue lindo, Angela. Um beijo grande em você e no seu pequeno x
Ana Maria
June 17, 2015 at 11:40 pmLinda mensagem amiga….
Como vc sabe eu tenho uma sobrinha c síndrome de Down…e posso te dizer q eles sao incriveis e tem uma visao de um mundo bem melhor…sem maldades..
bj
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:47 pmtenho certeza disso, Aninha x
Thata
June 17, 2015 at 11:57 pmLindo demais Nivea! Eu quase chorando aqui também. Que menina de coração aberto para enxergar essas coisas que as vezes passam despercebidas por nós. Normal chorar e ter medo diante dessa possibilidade. O ser humano tem medo do novo, do que não está acostumado. Tenho certeza que você seria uma mãe excelente se a Helena tivesse nascido com Down.
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:46 pmObrigada, Thata x
Bárbara
June 18, 2015 at 12:10 amTexto lindo, linda Elena!
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:46 pmObrigada, Bárbara x
kelly
June 18, 2015 at 12:29 amum post unico. Parabens por toda sua sensibilidade, amor e carinho. Sua filha eh linda e voce uma mae mais que especial.
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:46 pmObrigada, Kelly x
Marine
June 18, 2015 at 2:02 amNívea, acompanho seu blog a um bom tempo e adoro seus textos. Nunca comento, mas sempre gosto muito. Mas esse me fez arrepiar, me emocionou de verdade.
Parabéns pelos seus filhos e sua linda família.
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:46 pmObrigada, Marine x
Letícia MM
June 18, 2015 at 2:25 amLindo!
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:45 pmObrigada, Leticia x
Flavia
June 18, 2015 at 8:45 amVocê me emociona!
um beijo grande
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:45 pmObrigada, Flavia x
Paula Oliveira
June 18, 2015 at 11:17 amSabe que como deficiênte, me pego pensando no que “faria” se tivesse um filho como eu? Acho que, se isso é possível, o amaria mais ainda. Parece um clichê vindo de mim, mas crianças especiais são realmente especiais.
Como sempre, lindo o seu texto.
xx
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:45 pmPaula, não tenho dúvidas. A gente já tem um instinto de proteger o filho com a própria vida, se ele tiver qualquer necessidade especial, então, imagino que isso só aumente. x
Renata de Paula
June 18, 2015 at 1:33 pmNivs realmente o especial deles vão além dos nossos olhares … Minha irmã (SD) e maravilhosa! …. Lindo texto .
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:44 pmObrigada, Renata x
Andreia
June 18, 2015 at 3:07 pmÉ a bb zoiuda mais linda q eu já vi
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:44 pmObrigada xxx
Mariana
June 18, 2015 at 10:08 pmQue sensibilidade a dessa moça! Elena é mesmo especial e expressiva. Esses olhos me encantam. Me permite a liberdade? Elena é meu xodó virtual. Muito amor e paz pra essa mocinha, vida longa e próspera!
Beijo, Nivea.
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:43 pmOh, Mariana. Muito obrigada xxx
Bibi
June 19, 2015 at 2:55 pmSimplesmente lindo, Nívea!
Simplesmente linda, Elena!
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:42 pmObrigada, Bibi x
Helena
June 19, 2015 at 3:58 pmLindo texto, mas o mais lindo de tudo foi vc responder pra menina que Elena era perfeita como ela também era.
Isso que me tocou profundamente!
Eu sou psicóloga e desde o início da faculdade trabalho e vejo coisas muito difíceis na vida das pessoas. Síndromes, doença mental, sofrimentos diversos de ordem física, social, emocional.
Mas na gravidez foi fogo. Fiquei muito sensível e abalada com essa possibilidade e me culpei muito por sentir medo.
Eu, que convivo com tantas situações difíceis no meu cotidiano, não deveria estar mais preparada e mais tranquila com a possibilidade de ter um bebê não-idealizado?
Me preocupei e perdi muitas noites de sono e, assim que minha filha nasceu, perfeita, menina, como eu queria, tive essa mesma clareza que vc teve.
Que ela seria perfeita de qualquer jeito! Menino, menina, com síndrome, faltando membros…eu a amava, logo ela era perfeita, independente de qualquer coisa.
Aprendi muito!
Pretendo ter um segundo bebê e realmente não pretendo perder nem um segundo me preocupando com isso.
Agradeço a oportunidade de refletir tudo isso a partir do seu texto.
Beijos
Nivea Sorensen
June 23, 2015 at 9:41 pmOi Helena, muito obrigada. Eu acho que todo mundo fica muito sensível na gravidez e essas preocupações são normais, não? Não quer dizer que não vamos aceitar o filho venha ele como vier, mas ninguém deseja que a vida deles seja mais difícil do que já pode ser por natureza. Obrigada por compartilhar. x