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O olhar dela

We are accidents waiting to happen

(There There, Radiohead)

Por consideração a quem passa por aqui e se preocupa comigo, eu preciso começar dizendo que está tudo bem. Comigo, com o babóg, com I., com todo mundo.

Dito isso, também a metáfora da citação acima pode parecer exagerada. A não ser que você esteja pensando, como eu, em pequenos acidentes. Porque eu sou um desses, esperando para acontecer.

Ou melhor, eu sou um copo bem cheio. Desses que você deixar uma gota só a mais pingar, transborda. Desses que para beber você não pode levar à boca, com o perigo de fazer um estrago.

Transbordo felicidade com a menor das alegrias, mas ao mesmo tempo, vejo a menor das coisas tristes ganhar ares de depressão profunda. Cansaço vira exaustão em questão de minutos. Moderação e tons de cinza não fazem parte da minha vida.

E foi transbordando assim que ontem eu atravessei a rua em frente ao Trinity College para pegar o ônibus para casa.

O que aconteceu antes ou depois do que eu descrevo aqui não tem importância. Não agora. Não mais.

Pensei em pegar um táxi, mas isso significaria interagir mesmo que superficialmente com outro ser humano. Naquele estado, não dava. No ônibus, mesmo que cercada de pessoas, estaria mais protegida.

Ainda no ponto percebi que não conseguia conter as lágrimas, dessas grandes que caem de uma vez só e mal permanecem no rosto. Com a palma da mão aberta, ou a ponta dos dedos, fui tentando segurá-las. Posso ser chorona assumida, mas nunca, nunca em público.

Com o canto dos olhos, vi que quem esperava logo atrás de mim era uma senhora de muletas.

O ônibus chegou, entrei e me sentei no único assento disponível na parte de baixo, na segunda fila do lado esquerdo, tentando desesperadamente não olhar para ninguém.

Então me senti ainda mais triste e sozinha, tentando não ser vista chorando. E foi aí que sem querer meu olhar cruzou com o dela pela primeira vez: a mesma senhora da fila, agora sentada no banco reservado a idosos e pessoas com deficiências físicas. Justo aquele banco que fica na direção contrária à do ônibus, e de frente para todos os outros passageiros sentados.

Acho que em respeito a minha privacidade, ela desviou o olhar rapidamente. Eu ainda demorei um minuto para desviar o meu, pensando o quanto ela era bonita, apesar dos cabelos já completamente brancos e da idade. Cheguei a desejar que eu também tivesse a felicidade de envelhecer assim, graciosamente, e sem botox.

E foi aí que pensei na minha mãe, e como o tempo não tem sido tão generoso com ela. E de novo desviei o olhar, mas já não conseguindo esconder as lágrimas com o canto da mão.

Quando olhei de volta para frente, percebi que ela me aguardava com os olhos. Se levantou, com dificuldades devido ao movimento do ônibus e por causa das muletas. As pessoas em pé próximas a ela se afastaram para lhe dar passagem, ela deu poucos passos para frente e inclinou o corpo em minha direção me esticando a mão.

Naquele momento falharam todas as minhas tentativas de permanecer incógnita, pois todos olharam para ver o que ela me oferecia. Minha primeira reação foi sentir vergonha.

Eram dois lenços de papel. Sem saber muito bem como agir, agradeci e ela voltou a se sentar, sem dizer uma palavra. Usei o lenço para secar o rosto molhado e segurar o resto do choro, dessa vez causado pela doçura da atitude dela. Não pelos lenços, porque tive a impressão de que me oferecê-los foi só uma desculpa para se aproximar e mostrar com os ollhos que ela se importava, que alguém se importava. Como se ela soubesse que eu me sentia sozinha.

Já muito próximo do meu ponto, pensei que teria a chance de ao me levantar passar por ela, e agradecer de novo a gentileza. Mas não deu tempo, pois ela se levantou primeiro para descer. Em pé, ela voltou a olhar pra mim de um jeito terno, quase materno. Sem ser perguntada, eu respondi “I’m fine, thank you very much“, ela em resposta retribuiu com um “Are you sure?” quase murmurado. Balancei a cabeça com uma tentativa de sorriso e ela se foi.

Ao descer, ela esperou o ônibus começar a andar e me olhou mais uma vez pela janela. Não resisiti e acenei tchau. Ela fez o mesmo e abriu pela primeira vez um sorriso. Desses que a gente não consegue esquecer, nem quando tenta.

O que aconteceu antes ou depois do que eu descrevi aqui não tem a menor importância. Não agora. Não mais.

N.

 

About Author

42 anos; brasileira que mora na Irlanda; mãe de um filhote de irlandês do cabelo vermelho e muito fogo na bunda, de uma pimentinha de olhos grandes e curiosos e de uma caçulinha que é só sorrisos.

12 Comments

  • Daniela
    March 26, 2011 at 2:01 pm

    Chorei querida.
    Como minha mae insiste em dizer: é assim mesmo filha, é assim mesmo.

    bjo

    Reply
  • ka smith
    March 26, 2011 at 2:10 pm

    Você é como eu.
    Generosos gestos e um texto lindo assim, me fazem chorar e como a Daniela disse: “É assim mesmo querida, e vai passar”.

    beijo

    Reply
  • sandre
    March 26, 2011 at 3:12 pm

    linda a descrição.
    estou aqui na torcida pra que dê tudo certo.
    bjos.

    Reply
  • Carol P
    March 26, 2011 at 3:12 pm

    Querida chorei tambem, alias nao vem ao caso o pq mas quando tinha parado li seu texto e comecei de novo.
    Gente linda como essa sra eh um alegria quando cruzam o nosso caminho.
    tudo passa com certeza como as meninas jah falaram
    bj carol

    Reply
  • Aninha
    March 26, 2011 at 3:13 pm

    Você não está sozinha…Mesmo com um oceano de distância, a gente tá do seu lado, com pensamentos positivos e rezando muito para que vc, o babóg e o I. estejam bem…
    Sonhei com você esta noite e, lendo o post, tb não pude evitar com que as lágrimas escorressem pelo meu rosto.
    Em agosto, ainda que por pouco tempo, estarei aí e levarei o abraço da melhor mãe do mundo: a nossa.

    Como dizia o Bono: “it´s just a moment this time will pass”

    Luv u.
    Beijos no meu afilhado lindo!

    Reply
  • Cris
    March 26, 2011 at 3:17 pm

    UIuiuiui,
    que bando de mulher chorona!!!!!!
    Eu me incluo nessa.
    kkkkkkkk
    bjim

    Reply
  • Ingrid
    March 26, 2011 at 3:25 pm

    Ai, ai… ja chorei tanto sozinha na rua, a ultima vez foi em outubro de 2009, em um trem indo pro aeroporto em Copenhagen, estava atrasada, perdida, coração apertado, uma senhora com uma menina ambras de origem arabe estavam sentadas na minha frente, a menina novinha me olhou, olhou pra mae como quem dizia “faça alguma coisa”, então a mãe me olhou pegou uma balinha de mel e deu pra menina me dar, a menina me deu e disse “eh para adoçar seu coração” (eu me lembro e choro), logo chegou a hora de descer, eu nao perdi o aviao e tudo deu certo! =)
    Dizem que os olhos são as janelas da alma e quando choramos estamos lavando nossas janelas pra poder enxergar melhor oque ta ao nosso redor!

    Dois beijocas nossas pra voces dois ai!

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  • Veneranda
    March 26, 2011 at 4:11 pm

    O olhar dela, a ternura e a sensibilidade. Pequenos GRANDES gestos que fazem toda diferença. São como mãos pequenas a carregar o coração da gente…
    Fico feliz em saber que está tudo bem com vocês e que alguém tão doce cruzou o seu caminho no momento em que você mais precisava…
    Bjs

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  • Ernani
    March 26, 2011 at 7:33 pm

    Amo essas pessoas que enxergam as outras e conseguem mudar o sentido das lágrimas alheias sem muito esforço. Imagino que tenha sido um momento muito triste, mas acho linda, linda essa poesia da vida que se encontra na tristeza. Parabéns, querida! Um dos melhores textos que já li aqui. Melhor que isso, só quando vc ficar de novo feliz…
    bjos

    Reply
  • Neda
    March 27, 2011 at 5:57 pm

    Nivea!
    Que lindo! Eu sou uma chorona assumida, em publico inclusive. Foi se o tempo em que me preocupei com isso. Os meios de transporte sao meus alvos favoritos. Gravida e no pos parto entao …
    Beijos

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  • Mari
    March 28, 2011 at 3:43 pm

    Ai que lindo! Chorei enquanto li. Espero que esteja tudo bem agora.
    Um beijo!

    Reply
  • Luciana Ehsse
    October 10, 2014 at 12:49 pm

    Vale chorar? x

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