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Dois Pesos

O texto abaixo, de 2 de Outubro, é de autoria da psicanalista Maria Rita Kehl, colunista do jornal O Estado de São Paulo, que pode ter sido demitida (ou no mínimo censurada) pela publicação do mesmo.
Se eu fosse assinante do Estadão (não vejo porque seria, em primeiro lugar), cancelaria minha assinatura. Como não sou, publico o texto aqui, porque além de achar absurda a decisão do jornal, o texto é sem dúvida a coisa mais sensata que eu li nos últimos tempos.  E como eu queria tê-lo escrito! Se inveja matasse a Maria Rita, estaria agora, além de desempregada, morta.
N.
Ps. Eu não escrevo sobre politica. Simplesmente porque eu escrevo basicamente um diário, e não tenho a menor vergonha disso. E segundo porque não tenho a menor intenção de causar polêmica ou influenciar ninguém, muito menos de entrar em discussões sem fim, com o fulano cuja opinião é baseada na Veja, ou em senso comum. Isso não quer dizer, que eu não leia sobre o assunto, que eu não tenha minhas opiniões, e que meu sangue não ferva com algumas das bogagens que circulam por ai.

Dois Pesos – Maria Rita Kehl
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apóia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela presidência da república. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da bolsa-família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés-de-chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela bolsa-família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido ,fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. 200 reais é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso Passava-se fome, na certa, como no assustador “Garapa”, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A bolsa família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da bolsa família, que apesar de modesta, reduziu de 12 para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem idéia do quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de 200 reais? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou este efeito de “acumulação primitiva de democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas em seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do país. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do país, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática , parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

             

About Author

42 anos; brasileira que mora na Irlanda; mãe de um filhote de irlandês do cabelo vermelho e muito fogo na bunda, de uma pimentinha de olhos grandes e curiosos e de uma caçulinha que é só sorrisos.

3 Comments

  • Blog da Pandinha
    October 7, 2010 at 4:10 pm

    Ni, acho que passarei semanas refletindo este texto e a profundidade dele! Beijos pra vc e para o bb!

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  • Blog da Pandinha
    October 8, 2010 at 3:15 pm

    Amiga, o maior assunto entre jornalistas no Twitter ontem foi essa matéria. Quer dizer, o segundo maior, pois o primeiro foi o ganhador do Prêmio Nobel!

    Mas vim aqui pra te dar parabéns! Que Deus ilumine seu caminho, seu bebê, sua vida! Muitos beijos brasileiros, sabor pastel de feira, sem fotografia nenhuma pra não engordar e nem dar vontade!

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  • Anonymous
    October 13, 2010 at 5:09 pm

    Oi Nivea

    Se todo mundo tivese a oportunidade de ler e ter informações, li algo bem interessante tmb em outo blog (um sujeito na Irlanda) mas esse my god,parabéns por publicar eu não tinha lindo ainda.

    Ab

    Sônia

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